terça-feira, 24 de novembro de 2009

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«Quimioterapia. Quatro horas a ver pingar para dentro das veias o veneno que há-de matar a morte que teima em viver e medrar dentro de mim. O homem tem o triste vazio de, quanto mais a sente fugir, mais se agarrar à vida. De, quando vê chegada a hora da rendição, perder quase sempre o brio e em vez de enfrentar de cara levantada a fatalidade, bater implorativamente a todas as portas, da ciência, da crendice ou da ilusão. Eu ainda vou na primeira. (…) Sensação íntima de que estou por um fio. É agora…é logo. E, sem dar ouvidos à voz do pressentimento, arrasto-me todas as manhãs ao consultório, regresso à tardinha a gemer com os safanões do autocarro e subo penosamente a rampa da estrada da casa esperançado numa carta que me espere, numa boa notícia redentora, que sei que não vem, mas teimo em sonhar (…)»
«Requiem por mim
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.»
Miguel Torga, in Diário XVI, 1994